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29 dezembro 2017

O Pântano das Borboletas - Federico Axat

Federico Axat
416 páginas
Editora: Tordesilhas

Deparei-me com tantas resenhas parecidas pela interwebs que decidi fazer algo diferente. Vou 'bater um papo" sobre essa história e, mais pra frente, destrincharei com alguns spoilers.


O Pântano das Borboletas é o primeiro livo do argentino Federico Axat publicado no Brasil, que possui também, publicado pela Verus, a obra Mate o Próximo. A história gira em torno dos amigos Sam e Billy, e da mais nova componente do grupo, Miranda. Os três formam uma sólida amizade durante o verão de Carnival Falls, uma cidade fictícia, explorando bosques e adentrando mansões com galerias secretas nos anos 80.

A história é narrada por Sam, de doze anos, e foca bastante em sua vida durante a infância. Quando menor,  Sam perdeu a mãe num acidente de carro misterioso narrado no início do livro. A Granja dos Carrol é onde vive  com diversos irmãs e irmãos, todos acolhidos por Amanda e Randall. Á medida que cresce, Sam descobre mais sobre seu passado e sobretudo sobre Phillip Banks, um dito lunático que tenta provar a existência de extraterrestres. Mais do que isso, Banks associa o acidente de Christina Jackson a um caso de abdução. 


Embora pareça no início da leitura que Axat vai se aprofundar mais no tema alienígenas, o foco da história está longe de ser este. A amizade, crescimento e a proximidade entre as crianças é a trama principal. O enredo é dividido em quatro partes e pode-se dizer que uma complementa a outra, mas, em geral, a primeira e a terceira parte possui conflitos diferentes criados pelo autor, em que os três terão que unir forças e desvendar mistérios.

Lendo várias críticas através da Amazon, Skoob, bem como várias resenhas de livros, percebi que o leitor dá voz ao livro. Na contracapa ficamos sabendo que a história possui um tom lírico e, inclusive, vi resenhas afirmando o mesmo. No entanto, não notei esse lirismo em nenhuma parte do livro, exceto, talvez, pela nostalgia que a obra desperta e o último capítulo, que revela um mistério. Outra coisa que me surpreendeu: um usuário resenhou que O Pântano das Borboletas não deixa pontas soltas, mas posso atestar que o mistério ficou em aberto e, mais do que isso, aquele final deixa muitas perguntas!


Borboleta-monarca. Ela é uma das borboletas que
 circulam o pântano em que o trio visita.


Um outro usuário criticou que a história possuía vários personagens e que isso o confundiu... De fato, um ou outro reaparece do nada na história e demora alguns minutos para lembrar a origem daquela pessoa, no entanto, pouco mais de cinco personagens têm destaque especial. Entre eles, Collete e Joseph Meyer onde Sam passa algumas tardes lendo na casa para o sr. Meyer, e Orson, um menino da granja que se faz de bonzinho e se revela um antagonista sem escrúpulos. Não vi nenhuma dificuldade nesse quesito.

Inclusive, Collete Meyer é uma das melhores personagens, embora não seja tão desenvolvida e aprofundada na história. Ela possui uma sala cheia de caixinhas de música colecionáveis, entre elas uma de circo que aparece em várias passagens do livro. Mais do que isso, Collete possui uma biblioteca repleta de livros e incentiva a leitura a Sam. Tentei achar uma caixa de música na internet que se assemelhasse à descrição do livro, mas o mais próximo que encontrei está aqui: 



Por último, uma outra resenha negativa dizia que o livro se perdeu em passado e presente. Axat vai de fato desbravar o futuro de nossos personagens quando adultos, dedicando vários capítulos, antes de voltar para a trama original. Pra mim, tudo o que ele fez foi não seguir uma ordem cronológica, sem deixar nada confuso. Mais do que isso, ele chega a destacar o ano em que a história de passa. 

Não quero dizer que o livro é perfeito, apesar de ter amado a história, sobretudo o final. Uma das coisas que me incomodou foi o vocabulário vasto dos personagens, que ainda são jovens demais. Deu um toque de inverossimilhança na história; aos poucos me acostumei com isso. Sem contar que, sem dar spoilers, há cenas de violência bem chocantes, por isso não recomendo para menores.




Obrigada por ter ficado até aqui, gostei da sua presença. Mas agora trago um espaço cheio de spoilers pra galera que quiser dividir experiências de leitura. Vou destrinchar uma das partes mais importantes do livro, então, a menos que tenha lido, é melhor sair... Entendido?

Federico Axat, a mente por trás do livro.

A revelação final é, na minha opinião, algo impossível de prever. Senti, depois de analisar cada pormenor da história, que de fato o autor havia nos dado pistas. Havia brincado com a nossa percepção sem que nos déssemos conta. Isso, meu caro, é uma experiência única que abre espaço para uma discussão de gênero enorme, mais do que uma discussão sobre orientação sexual, eu diria. 

Sam é, na verdade, uma garota. Como? Por quê? Axat nos fez de bobos e fez com que repensássemos toda a história, todas as atitudes dos personagens. A genialidade desse livro é que nós supomos desde o início que Sam é um garoto. Em nenhum momento ela diz "eu sou um garoto, eu sou um menino...", muito menos usa adjetivos com "o" ou "a". Sim, isso não incrível? Se você retomar algumas partes do livro, perceberá isso. 

Por que pensamos isso, então? Eu tenho uma teoria, e ela se chama heteronormatividade. Quando Sam diz estar apaixonada por Miranda, uma garota, a primeira suposição é de que se trata de um garoto. Sem contar que o fato de Sam, já no primeiro capítulo, andar de bicicleta, escalar árvores e bisbilhotar através de binóculos são ações normalmente associadas a meninos, visão sempre reafirmada através de filmes, sobretudo dos anos 80. 

"Nunca voltei a ter amigos como o que tive aos doze ano. Por acaso isso é possível?" Esse é o epígrafe que inicia o livro, do filme Conta Comigo, e um bom exemplo de clássico dos anos 80.

Ao descobrimos que Sam possui um melhor amigo, o Billy, novamente temos essa visão estigmatizada. Eu lembrei dos meninos de Stranger Things, percorrendo as ruas com suas bicicletas e resolvendo mistérios. Mais uma vez, ações relacionadas a garotos. Essa visão inicial de que Billy e Sam são dois meninos brincando teve um lado positivo, no entanto: não houve aquela visão deturpada que normalmente o leitor tem, quase de forma inconsciente, de que os melhores amigos vão acabar tendo um relacionamento amoroso. Eu, pelo menos, consegui pela primeira vez enxergar uma amizade do modo que ela é: uma amizade.

Toda a trama concernente aos extraterrestres talvez tenha um papel metafórico dentro da história, pois Sam, como lésbica, sente-se de alguma forma como se fosse de outro planeta. Todas as meninas ao seu redor se comportam de forma diferente e seus sentimentos são conflitantes. Uma ótima metáfora, não?

Vamos às pistas, meus caros. Elas não estarão em ordem, e talvez faltem muitas, mas colocarei aqui as que me recordo melhor. Algumas são mais sutis, outras, quase escancaradas. Comentem!

"Disse que o vestido era muito bonito, mas inadequado para o bosque; e que se ela quisesse fazer parte do grupo, deveria usar jeans como eu." Billy, tentando readequar Miranda, fala, através de um discurso indireto, que ela deveria usar jeans como os de Sam. Ora, por que não como os dele? Porque Sam é uma garota, por isso ele a usou como um modelo para que Miranda seguisse.

Por que Miranda acredita que Billy escreveu o poema a ela, e não Sam? Logo no início do livro, quando Samantha visita a casa da amiga, Miranda diz que possui algo para lhe revelar. No jardim de inverno, ela mostra a correntinha e o poema que ganhara. Quando pergunta pra Sam se ela tinha escrito, as duas ficam constrangidas e depois Miranda se corrige, considerando a hipótese um absurdo. Ela pensou que a Sam havia escrito o poema por encomenda de Billy, e sequer cogitou a possibilidade da própria Sam tê-lo feito. Outra questão que se abre nessa cena: por que Miranda revela o presente para Sam, e não para Billy? Porque ambas são garotas. Miranda pensou que podia confiar em sua amiga para revelar algo tão pessoal. Inclusive, isso se sucede em diversas partes do livro, como quando Miranda revela as brigas entre seus pais.

Por que Sam possui tanta vergonha de contar seu segredo a Billy? Em um primeiro olhar, a conclusão que tiramos de suas ações é de que Sam é um garoto tímido demais e, talvez, com baixa autoestima. São vários os trechos que ela revela não poder contar a ninguém o que sente, e que não tinha coragem para se abrir. Obviamente, seu constrangimento era revelar sua homossexualidade, algo que provavelmente nem ela entendia muito bem na época.

Teve outros pontos em que o autor simplesmente brincou com a lógica do leitor. Um trecho, por exemplo, Billy cogita a possibilidade de que a pessoa idealizadora da chantagem com o livro Lolita era alguém que estava interessado em Sam. Ora, se Sam é um garoto, pensei, talvez Mathilda esteja apaixonada por ele e deseje lhe chantagear de alguma forma. Mas acontece que Billy estava pensando em Orson, não em Mathilda

Isso acontece em várias partes, como quando Sam tenta retirar a madeira da casinha de cachorro para construir a casa na árvore, e Billy a interrompe dizendo: "Isso é trabalho para homem. Deixa que eu faço". Inicialmente, a impressão que fica é que Billy esta simplesmente gozando e inferiorizando a "masculinidade" de Sam, por assim dizer. Sem contar que, quando os dois estão na clareira lendo o jornal e Mark e seu bando aparecem, ele sugere que Sam e Billy são namorados. Vê como a percepção das cenas muda drasticamente?

Um grupo de garotos em busca do melhor amigo. Stranger Things.

A cena com Mathilda impedindo a entrada de Sam na granja foi quase completamente deturpada na minha cabeça. Em um primeiro momento, eu jurei que Sam estava se sentido humilhado porque ele era um garoto e Mathilda conseguia superá-lo em força. Depois, Mathilda ainda diz: "Isso são seios, Sam... Olhe bem porque acho que você não sabe o que é isto." (Um breve comentário: as falas não foram transcritas, escrevi o que me lembro). Mathilda estava, então, zoando o fato de Sam não ter peitos. 

Isso explica também por que Katie se sente aberta para falar que Orson não para de encarar seus peitos na frente de Sam, e também por que Claire, em pleno anos 80, espera que um garoto a ajude na cozinha ("Eu preciso ir aos Meyer"). Eu pensei seriamente que todos os meninos tinham que fazer os trabalhos domésticos dentro da granja, mas isso provavelmente não é verdade. Outro detalhe, Colette descarta a possibilidade da foto pornográfica dentro de Lolita pertencer a Sam com muita convicção - se ela fosse um garoto, talvez a percepção não fosse a mesma.

Na segunda parte, Sam explica como foi o seu relacionamento com a primeira namorada, Heather. Ela descreve que em Nova Iorque as coisas eram diferentes e as festas eram mais ecléticas, e que ainda não havia se relacionado com nenhuma pessoa. Posteriormente, chega a narrar a história de Heather, que havia sido obrigada a ficar com um rapaz por causa do pai e que depois decidiu enfrentá-lo, pois estava muito infeliz. Eu pensei que ela estava infeliz com o casamento arranjado, mas o fato era que ela estava infeliz por não poder assumir sua sexualidade. 

Em uma da últimas cenas na casa da árvore, Miranda questiona Sam: "Sam, você gosta de mim?". A pergunta a pega desprevenida. Ela chora ao ser descoberta, constrangida, e Miranda a consola: "Nós nunca mais precisamos falar disso, se não quiser". A vergonha de um primeiro amor? Não, a vergonha de que alguém mais soubesse seu segredo. Samantha era lésbica. Quando os personagens crescem, o pensamento que fica é: "Por que Sam não tenta algo com ela? Por que Billy? Por que Miranda sequer cogita Sam?". Porque Miranda é hétero.

Foto de Magdanela Berny.


O último detalhe revelador, e talvez o que mais nos faça rir é... a capa do livro. E ela também é culpada pela mentalidade de que Sam é um garoto: a boina cobrindo os cabelos esconde o fato de que, na verdade, a foto é de uma menina. Isso é fruto da hábil mão da fotógrafa Magdalena Berny. Não sei se alguém conhece o filme Tomboy, mas trata-se da história de uma menina que consegue se passar por um menino, e a mensagem que essa capa passa é a mesma que vi no filme. 

O mais incrível é perceber que essas pessoas não parecem "mais femininas" ou "mais masculinas" na minha visão, atingindo um equilíbrio que nos faz pensar:

Afinal, é uma garota ou um garoto? 


Tomboy. Filme francês imperdível para quem gosta de histórias
 que falam sobre gênero.






6 comentários:

  1. Tô chocada, essa foi a história que mais me surpreendeu. Fiquei até um pouco atordoada com a revelação. Me enganou direitinho. Amei o livro.

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  2. Eu não achei o livro espetacular. Mas o final te da um nó na cabeça e sua resenha é alucinante

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  3. Li boa parte desse livro faz tempo. Não pude terminar nem retomá-lo... Ainda. Lembrei dele esses dias e procurava uma resenha para apresentar junto com o livro para um amigo a quem vou emprestar. Tive a mesma impressão que você: são todas muito iguais e deixam escapar o que a história tem de interessante. Já a sua, uau! Vou considerar bastante quando voltar a ler. Inclusive, acho que você também tem talento para escrever um bom livro. Só lamentei por você não ter falado mais sobre os ETs. O pouco que você disse lembra estudos que li relacionando sensações de abdução a abusos sexuais sofridos na infância cujo trauma é disfarçado pela memória. Mas afinal os do livro são reais, criados pela imaginação dos personagens ou parte de alguma trama criminosa?

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  4. Devo admitir que não achei o livro surpreendente: havia descrição de muitos personagens secundários que voltavam do nada e me deixavam um pouco perdido. Mas isso não foi de todo ruim. Talvez o problema esteja na diversidade de assuntos abordados em único livro, tornando impossível saber se ele é um romance ou ficção científica ou sei lá o que. A desconfiança de todos em relação a Sam por causa da foto dentro de Lolita fez mais sentido depois que eu descobri que ela era uma garota: a foto mostrava um relacionamento sexual entre duas mulheres. Porém,em um cenário geral, não desconfiei que Sam pudesse ser mulher justamente pelo autor não usar designações de gênero, afirmações do tipo "estou cansada". Minha visão heteronormativa me fez crer desde o princípio até o fim que Sam era homem. Quando cheguei ao final e vi que ela era mulher fiquei me perguntando se ela era uma garota desde o início ou se era uma pessoa que nasceu como menino,mas se identificava como mulher e fiquei tentado a procurar no livro sinais que indicassem isso. O que o autor fez foi de uma genialidade absurda e fiquei sinceramente emocionado e impressionado. Irei reler com toda certeza!

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  5. Eu adorei os pontos que você levantou ao 'revisitar' trechos do livro. Minha vontade ao terminar foi de reler tudo hahaha. Reli alguns capítulos e no final a Sam fala pra Miranda que se ela não a tivesse amado antes do acontecido ela teria sempre se questionado sobre a que ponto Orson teria marcado ela (como se ela tivesse um trauma de homens e não quisesse um relacionamento hétero),mas que amar a Miranda antes a salvou pois ela sabe que é quem realmente ela sempre foi

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